... Mas se a gente não fizer, não vai ser.
Hoje eu ouvi um episódio lindimais sobre o que a gente é vs o que a gente faz no podcast "Boa Noite, Internet" do Cris Dias.
É uma delícia ouvir podcast na academia. Eu deixo lá o corpo fazendo a manutenção dele e consigo ocupar o cérebro dialogando com os assuntos em pauta. Sabe a sua avó que conversava com o locutor do rádio? Não? É porque você não sabe o que é rádio. Nem o que é locutor. Pergunta para a sua avó o que é rádio que ela te explica. E aí ela vai te explicar também que quando o locutor (o mocinho com voz de galã dentro da caixinha de música) falava alguma coisa, às vezes as pessoas respondiam. Mas respondiam sozinhas assim mesmo nas suas casas, sem caixa de comentários nem nada. Louco, né? Ah, e depois pergunta para a sua avó o que é galã também. Ocupa lá o dia da véia.
Pois é, quando o Cris Dias com sua voz de galã fala, eu respondo. Mas eu respondo sozinho dentro da minha cabeça, onde tem uma caixa de comentários enorme que só eu tenho a senha. É, é meio solitário lá dentro. Por isso eu ouço podcasts na academia, que é para ter o que fazer e para que ninguém na academia resolva me internar ou jogar um peso na minha cabeça.
Sei lá, tem gente doida no mundo e pessoas reagem às coisas jogando pesos uns nos outros. É daí que nascem as guerras e o programa do Datena.
Então, estava eu lá batendo altos papos com as vozes na minha cabeça enquanto meus braços faziam seus supinos retos oblíquos com farinha de rosca (é assim que chama o exercício, né? Não sei, não falo a língua do meu corpo) e fiquei pensando sobre o que é ser e o que é fazer, uma vez que uma vez em um congresso de criatividade o palestrante / facilitador / guru soltou um "se apresente sem dizer o que você faz" e isso meio que fudeu tudo. Até hoje não consegui e já faz uns 5 anos isso.
E o Cris Dias, que não foi nesse congresso estava explicando que você é aquilo que você faz e o que você é são os outros que decidem. A gente não tem controle sobre ser o que a gente é porque ser é um turbilhão de emoções desvairadas subjetivas que mudam hormonalmente (palavras minhas, o Cris é todo elegante). E por fim, os rótulos que pessoas usam para outras pessoas é meio fixo e simplão, aí a gente cabe nesse ser sem muito esforço.
Continua o podcast dizendo que em terapia foi-lhe perguntado "se dinheiro não fosse um problema, qual você desejaria ser sua profissão", ao que ele respondeu ser escritor e o terapeura (sempre eles) "mas você quer ser escritor ou você quer escrever"?
É, eu também.
Aí discute-se o seguinte: ser escritor é uma coisa. Fazer escrita é outra.
O escritor que eu quero ser é a incensada sub-celebridade underground que anda por aí vestido de preto, com chapéus, correntes, piercings e tatuagens dando entrevistas, participando de podcasts, sendo convidado para lançamentos e projetos no SESC porque meu último quadrinho virou série na netflix.
(como eu nasci em 1979 e fui adolescente nos anos 90, a subcelebridade undeground é meio grunge mesmo...)
Mas ser escritor é beeeeeem diferente da escrita. Primeiro que ninguém me convida para nada, mas fora esse fato, fazer escrita é uma labuta pentelha que eu desempenho todos os dias sabendo que 80% do que eu escrevo nunca vai ver a luz do dia. Eu também passo muito do meu tempo explicando que eu sou escritor e propondo maneiras para as pessoas de me deixarem ser mais escritor por trocados a mais.
E quando eu estou efetivamente escrevendo algo que vai para algum lugar, a maior parte do meu tempo é dedicado a:
Ok, essa personagem está no quarto dela. A mãe chamou para jantar. Amanhã tem escola. O namorado acabou de sair pela janela e os tentáculos do monstro ainda estão aparecendo debaixo da cama. Como eu faço ela descer para jantar agora? Deixa ver... "Mariazinha então chutou o tentáculo mais próximo de volta ao seu lugar e puxou o edredon para cobrir os outros dois. O edredon se mexeu um pouco, mas com sorte sua mão não perceberia" Não, não, eu não posso deixar os tentáculos à mostra assim... Que tal se eu dobrasse o tapete? Não, talvez seja melhor trazer o namorado de volta. Ok, o namorado não saiu pela janela. "Mariazinha chutou o tentáculo mais próximo de volta de baixo da cama, arremessou um travesseiro sobre os outros dois e empurrou o namorado para o chão. - Senta aí, ela disse, eu já volto!". Não, espera... Acho que a mãe faria questão que o namorado ficasse para o jantar...
Deu para entender a tortura, né? E tudo isso enquanto eu não estou vestindo roupas pretas, nem chapéus, nem correntes. Estou aqui de bermudão e camiseta velha e a xícara de café que eu trouxe para o computador já está meio morna.
Se você não gosta muito muito muito mesmo de martelar as palavras e moldá-las até elas fazerem o que você precisa fazer, você não faz isso aqui. Ah, e depois que seu texto está pronto você ainda pede opiniões dos outros e tem que voltar a martelar!
Fazer o quê? Tem que fazer né? Se eu fizer muito e bem feitinho, quem sabe eu consiga ser.
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